Algemas: é preciso debater

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- outubro 10, 2013

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal de normatizar o uso das algemas – através da Súmula Vinculante nº 11 – merece todo apoio, ainda que nem sempre a opinião pública tenha compreensão do alcance desse julgado. Assistimos diariamente nos noticiários de televisão presos serem humilhados ao serem colocados no camburão, ou mesmo expostos sem camisa e de shorts. Neste último exemplo, me refiro aos jovens que espancaram uma doméstica no Rio de Janeiro, sendo que a explicação das autoridades policiais para tal prática era de que se tratava de um procedimento usual expor bandidos naquela condição.

Na quarta-feira passada, dia 20 de agosto, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou também o Projeto que regulamenta o uso de algemas. De acordo com a proposta, fica proibido o uso das algemas: como forma de castigo; quando o investigado se apresentar espontaneamente à autoridade policial; e por tempo excessivo. A Súmula aprovada pelo STF e o projeto da CCJ têm objetivos semelhantes: evitar o uso abusivo das algemas. Evitar tal abuso é fundamental, afinal, como ressarcir danos morais e de prejuízo de imagem a um investigado que posteriormente venha a ser considerado inocente?

O Direito Penal tem como objetivo principal punir aqueles que praticam crimes. Entretanto há uma evolução incontestável no sentido de que a pena deve possuir o potencial de recuperação do infrator, o que na prática não ocorre praticamente em nenhum lugar do mundo. As prisões são lugares em que tudo acontece, exceto se criar condições de reintegração do preso à sociedade. Muito pelo contrário, as condições de absoluta indignidade à que são submetidos os infratores os tornam potencialmente criminosos em grau maior do que no momento de ingresso no sistema carcerário.

Embora advogado, nunca militei na área penal. Entretanto, tive duas experiências marcantes na minha vida: a visita, em 1989, a um distrito policial no qual dezenas de presos foram colocados numa cela extremamente pequena, ocorrendo inúmeras mortes por asfixia, e a visita ao Carandiru após o incidente de 1992. Tais experiências foram muito marcantes e desde então acredito que há a necessidade de se melhorar as condições carcerárias do Brasil, até mesmo como medida de diminuição da violência, considerando que ao se criar oportunidades para a população carcerária estaremos diminuindo a médio prazo a violência e a criminalidade. Este raciocínio encontra resistência por parte daqueles que defendem o aspecto unicamente punitivo da pena, desconsiderando que a faixa etária dos presos é relativamente baixa, de modo que é rigorosamente justificável a busca de reintegração de um jovem de pouco mais de 20 anos na sociedade, evitando com isso a reincidência na criminalidade.

 

Não faz parte das condenações os horrores aos que os presos são submetidos, como pagamento à alimentação a outros presos e agentes penitenciários, submissão sexual, enfim, práticas admitidas quase em caráter universal. Uma discussão presente na mídia, no cinema como o filme “Brubaker” com Robert Redfort, evidenciou na década de 70.

De certo modo as humilhações a que os presos são submetidos exercem um importante papel simbólico perante a sociedade, uma vez que esta se sente “vingada” nesses atos. Entretanto, do ponto de vista ético não há como se aceitar abusos e práticas exercidas à margem da lei. Por que pessoas devem ser transportadas no “chiqueirinho” e divulgadas as suas identidades de modo amplo antes mesmo de se ter a certeza de serem autores de crimes?

Há que se fazer um esforço de convencimento de que em primeiro lugar as punições são aquelas previstas na lei e aplicadas pelo Poder Judiciário. E isto somente após a condenação, não cabendo às autoridades policiais tomar para si o papel do juiz. Aliás, me assusto quando vejo nos programas de televisão cenas em que policiais praticam abuso em interrogatórios, na efetivação de prisões, a exemplo da série “Law and Order”. Esta é uma situação que merece o debate da sociedade, uma vez que os limites éticos devem ser sempre colocados com o objetivo de se demonstrar que na história da humanidade os avanços consubstanciados no respeito aos direitos humanos representam um ganho da sociedade de maneira geral.

A tortura na Idade Média era um procedimento legalmente aceito para se obter a confissão dos supostos criminosos, e as execuções eram espetáculos públicos como Michel Foucault descreveu exemplarmente em seu livro “Vigiar e Punir”. Aliás, a execução de Tiradentes é um exemplo a ser relembrado pois a mesma se deu numa espécie de festa publica da época.

Infelizmente no Brasil, muitas dessas práticas ocorrem cotidianamente nos distritos policiais. Recentemente li um livro sobre um evento ocorrido em São Paulo na década de 90, quando jovens da periferia foram envolvidos num crime que não participaram. Recomendo, aliás, esse livro – “Bar Bodega” – do jornalista Carlos Dorneles. Particularmente, acho interessante que o mesmo demonstra como a imprensa foi conivente com o que ocorreu, e, o que é mais sério, num governo comprometido com a defesa dos direitos humanos.

Voltando à decisão do Supremo, muitas pessoas têm argumentado que a indignação ao uso indiscriminado das algemas surgiu quando banqueiros têm sido presos. Vale lembrar que a decisão do Supremo surgiu em função de um pedreiro que se sentiu prejudicado pelo uso das algemas durante o seu julgamento perante o Tribunal do Júri. Muita gente séria tem me dito que o uso das algemas naquele caso seria legítimo, se vale para pobre deve valer para rico. Devemos, isso sim, lutar para que o respeito ao cidadão no Brasil seja efetivamente universal, alcançando indistintamente pobres e ricos. Além disso, devemos ter como livros de referência nas escolas de direito “O Carandiru” de Drauzio Varella e “Bar Bodega” de Dorneles, além de utilizarmos as séries de TV como objeto de estudo com a finalidade de levar aos estudantes a reflexão sobre situações em que as fronteira éticas relativas à determinados comportamentos são claramente colocadas.